Um texto emocionante sobre o tempo, nossos corações e a Fazenda da Tafona

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Siga a querida.

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500 anos depois

 

O que você colocaria em uma cápsula do tempo se soubesse que ela seria aberta daqui a 500 anos. Organizando os livros da biblioteca da Fazenda da Tafona encontrei o relato sobre uma dessas engenhocas. Pois em 1939, os americanos enterraram uma cápsula em frente ao obelisco de Nova York e enviaram para todas as instituições mundiais folhetos escritos em “tinta indelével” explicando o que compunha o material e dando a latitude e longitude de sua localização para que, no tempo preciso, ela pudesse ser encontrada.

Imagino o que diria um habitante de uma possível Terra daqui a tantos anos ao ver uma pequena gilette – esquecida na cápsula pelo seu idealizador. Mas vamos aos fatos.

Antes de colocar qualquer coisa em uma cápsula dessa natureza, temos que pensar objetivamente qual é o destinatário…

Deus é uma opção razoável. É certo que daqui a 500 anos (pensando a partir do ano de 1939), ele ainda estará por aqui e terá memória descritiva do que se passou na Terra. Se for Deus o nosso “abridor”, o melhor é deixar algumas abstrações, como bons sentimentos, lembranças, saudades, uma cena ajudando a velhinha a atravessar a rua, por exemplo,  um texto sobre como tomar café, fotos de quadros ou afrescos onde ele é o protagonista – morto ou vivo – Caravaggio, Michelangelo, com sua Capela Sistina – para dar um tom futurista e inspiração ao Juízo Final. Nesse tempo futuro, Deus já estará perdendo sua capacidade de rir e se ele não preservar o senso de humor o que será das gerações futuras? Pensando nisso, é bom que tenham deixado filmes do Gordo e o Magro ou do Chaplin. Se fosse agora e se a cápsula pudesse ter inspiração gaúcha, deixaríamos um desenho do Santiago, uma crônica do Veríssimo, cuia, bomba. um pacote de erva, uma chaleira e uma bambona de água. Duas, quem sabe. Para garantir, já que água será vendida no submundo e a conta-gotas.

Mas e se for um cidadão comum do ano 2.439, o que seria interessante deixar? Todas as coisas já serão muito antigas, mas certamente ele ainda usará um prato para comer. Podemos deixar um óculos, porque em 2439, as pessoas não usarão mais óculos, mas com um objeto desses, elas poderão ter as mesmas sensações de dejavu que os visitantes dos briques e dos antiquários têm quando “lembram” dos objetos da casa da avó. Talvez tenham deixado uma máquina de escrever. UMA MÁQUINA DE ESCREVER!, ora vejam. Hoje, menos de 100 anos depois, ela já está obsoleta. Poderíamos tentar um upgrade da cápsula e então deixaríamos uma super placa mãe, um Iphone 11. De nada adiantaria.. Em 2439, o ser humano nascerá de uma placa mãe.

Mas penso que pode ser uma mulher abrindo a cápsula. Anéis indianos seriam uma boa opção. Um indiano congelado também. Ela o descongela e, finalmente, entende para que serve um homem.

Voltando à cápsula de 1939, ela ainda está lá, em frente ao obelisco de Nova York, com suas 20 mil páginas de história, suas sementes em vidros hermeticamente fechados, seus microfilmes com textos do Einstein, Thomas Mann e outros. A cápsula foi patrocinada e produzida pela Westinghouse Eletric Manufacturing Company e enterrada a 16m50 de profundidade, em uma grande solenidade, durante a Feira Internacional da cidade.

É bem possível que, depois de aberta, ela se torne uma piada para os humanos de então. Em um outro cenário, com a terra devastada, as sementes seriam bem vindas e uma nova guerra aconteceria para que os muitos povos resolvessem qual teria o direito de replantar o alimento e a vida que já tiver sido esquecida.

 

(Texto inspirado em anotação do livro “O Mundo do Futuro”, de Hammerly Dupuy – publicado na década de 1950 . Acervo Fazenda da Tafona – Cachoeira do Sul)

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Folhetim A mãe e a casa – Capítulo 11

Xandica, a lã, a solidão, o fogo e o braço

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Eu não tenho compromisso com a verdade. O que imagino tem lógica. A vida não tem lógica. Tem que extrair literatura da vida para que ela fique mais verossímil. Porque não dá para contar tudo certinho como foi. A saudade vira bruma e na bruma perdemos os detalhes, o pano verde da mesa, as argolas de enrolar fita, o medo que dá olhar o velho Sebastião na parede da sala.

Por enquanto, vamos cuidar da casa, pois o tempo já fez estragos demais e a mãe está louca para desfazer o testamento que doava tudo para a Igreja e começar o quanto antes a cuidar de seus tijolos, de suas janelas, de seus vidros e de seus fantasmas. Mas ela não pode entrar na casa sem antes eu contar sobre sua última moradora.

A pausa agora é para falar de Alexandrina Martins, a Xandica.

Quando tia Miloca nasceu, a São José era grande e fazia juz aos seus quase 100 anos. A tia também duraria os próximos 100 que viriam, me alcançando quando já era velhinha e birrenta. Mas não é dela que vamos falar. É de Xandica, uma mestiça índia e negra que havia sido presenteada para a tia Miloca no dia de seu nascimento, pelo padrinho, o Dr. Goulart, o mesmo que foi acusado de mandar matar a Vicente da Fontoura, na Igreja Matriz de Cachoeira, durante uma eleição, na década de 1860.1

Xandica era pequena também, uma escrava menina, não tanto quanto o bebê Miloca, mas foram criadas juntas. Não eram irmãs, mesmo assim brigavam como se fossem e não tinham as mesmas regalias. Por motivos diferentes, Miloca e Xandica cresceram na cozinha. Miloca por gosto de cozinhar, por gosto de conversar com Salomé e Rosaura, Xandica porque ali era o seu lugar. O que Xandica olhava, tia Miloca comia. Com a abolição, jovem adulta, ela continuou na casa porque não havia outro lugar para ir, nem outras pessoas com quem ficar. Seu jeito de falar tinha ainda alguma coisa dos ancestrais indígenas.  O substantivo se transformava em  ação, falava tempos verbais inexistentes. Aprendeu a cardar e a fazer xergões que eram vendidos para que os cavaleiros colocassem  embaixo das selas de montaria e não machucar o lombo dos cavalos. Fazia cobertores também. Dizia que estava xergando…comidando. Dizia que a pequena árvore ia arbustar – crescer e ser uma grande árvore. Dizia que o quarto dormia, a cadeira sentava, a mesa almoçava.

sia Xandica

Elas ficaram sozinhas na casa, depois que o velho José Sebastião morreu e ficou vagando pelos quartos, não para assustá-las, mas porque estava tentando achar alguma coisa que já esquecera, bem antes de sair do mundo. Pouco tempo após, Maria Manoela também se foi, não sem antes andar com uma bolsinha na barriga, substituindo seu intestino.

Havia uma brabeza nas duas… um mau humor e uma birra. Mas viveram juntas. Uma no quarto e na saleta do oratório e outra no quarto ao lado da cozinha. Esses espaços eram ainda preservados de goteiras, mas os vidros das janelas estavam quebrados e assim, principalmente no inverno, viviam no escuro,  por conta do frio que entrava pelos buracos das vidraças. A parede do corredor, que dava para o pátio do poço, tinha sido escorada por paus de eucalipto anos antes, para que não desabasse. Eram visíveis as formigas pretas – as Vieiras – andando pelas paredes sempre em carreiras. As duas viviam com muito pouco dinheiro e os sobrinhos levavam os mantimentos. Mandava bilhetes para a mãe, sua afilhada. Que lhe trouxesse café do Frízia, pão, arroz, açúcar, sal, farinha. A comida era restrita. Havia leite e alguns ovos por lá mesmo…  Até o dia que, ao puxar o trinco de uma das janelas, sua bacia se desconjuntou. Houve um rebuliço, uma logística, um desespero, todos já descritos. Ela foi para a casa da mãe, na cidade e Xandica ficou sozinha, ela e sua roca de fazer fios e seu tear para cruzá-los. Ficou só com o vento que entrava pelos buracos das telhas. Ficou só e sem a referência de sua vida.

Em uma carta para Suely, sobrinha que morava em Pelotas, Tia Miloca escreveu a história:

  • “Xandica a 15 dias está hospitalizada, veio muito mal la de casa, com o braço todo       queimado. De manhã ao levantar e acender a vela prendeu fogo na roupa e na cama, se não fora a Joana  chegar tão pronto seria muito pior, era capaz de haver um incêndio na casa, na véspera a menina que dormia la fazendo companhia encontrou a ela caída na cozinha. Levaram para a cama, machucou-se um pouco, mas a noite passaram em claro com ela variando toda a noite, vieram em seguida para casa e assim tem estado sempre. Gemina vai todos os dias no Hospital e acha que ela não resistira. Há pouco Silvio veio de La  e disse que Hontem a noite amputaram o braço que já estava gangrenado. O mês passado ela estava com uma ferida na perna, pedi a Jose traze-la depois pedi a Geraldo, não conseguiram traze-la para vir agora nesse estado. Não imaginas como ela estava em grave estado de fraqueza desde que chegou tomando soro e que de nada adiantou. Ela não quiz sair de casa nem para ir  dormir na casa de Joana. Eu nem sei o que pensar, todas as vezes que vinha alguém me diziam que  ela passava bem. Gemina acha que ela não fazia comida por não se animar, alimento não faltou não deixei de mandar. Não pude ir vê-la. Ela esta no 3º andar e não posso ainda subir escada e o elevador a dias está em concerto.” 2

Sim, a mãe tinha razão: Xandica não resistiu. Ainda há um xergão feito por ela com as filhas do José e da Edi, sobrinhos-netos da Tia Miloca. Penso que Xandica tinha pensamentos suficientes e ancestrais. Pensamentos sobre a chuva, sobre o muito sol, sobre o capim crescendo, sobre lãs, sobre a hora de tirar água do poço, sobre a terra e sua coberta marrom, sobre a luz que vinha da lua e também sobre seu escuro.

Um tempo depois de sua morte, chegou para a mãe uma conta do Hospital. Era a cobrança do enterro do braço amputado da velha índia. A mãe colocou a correr a criatura. Para sempre, depois, quando algo muito fora do comum acontecia, a mãe murmurava: “é o braço da Xandica”.

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  1. Dr. Pereira Goulart era tio da Maria Manuela, esposa do José Sebastião, o velho do retrato. Ele foi um dos acusados de mandar o escravo liberto João Pequeno matar a Vicente da Fontoura em um dia de eleição, na Igreja Matriz da cidade. Vicente da Fontoura representava uma incipiente burguesia urbana e possivelmente mais liberal. Goulart era da elite latifundiária, que não admitia mudanças no mundo. Eram dois partidos e dois modelos de elite, ainda se acomodando como abóboras em uma grande carreta.
  2. Carta transcrita por Mario Franklin Gastal,  filho da Suely, a destinatária. O texto permanece tal como foi escrito.

(Fotos: Mario Franklin Gastal)

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Folhetim A mãe e a casa – capítulo 10

Veja bem, ela não pensava o que, nem qual, nem onde. Estava tudo nela.

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Ela era milagrosa. Sim, claro que era. Conversava com objetos, dava nome para as panelas, para as xícaras, para os armários. Dizia que existiam e que tinham lembranças, assim como as árvores. Árvores crescem observando como nós crescemos também… envelhecem junto conosco. Árvores reparam em tudo a sua volta, falava, assim meio ao léu, tipo enquanto amassava o pão e aguardava o fermento derramar pela borda da caneca aquecida. Pássaros, então! Nem se fala.

Eu sabia que ela conversava coisas íntimas com os pássaros. Um modo de amor que era mais que Deus.  Os filhos todos saíram meio sem noção… falavam na rua com passarinhos, qualquer um. Eram cheios de amor pela liberdade que tinham as criaturas de asas. Mas a mãe, não tinha parecença com ninguém, seus milagres eram inadvertidos… eram sem querer. As pessoas notavam antes. Um dia a chamaram para mostrar a abobora de 50 quilos que havia crescido mais que o homem que a plantara e que precisaria dois homens para abraçá-la. Foi cortada com serra e distribuída a todos os habitantes da vila. Em Santaninha, onde era professora, aquilo pegou o povo em um viés iluminado.  Era santa a professora: arredou os piolhos da cabeça dos ricos e dos pobres, fez um apara bosta que era um luxo de casinha e ensinou até os cavalos a marcharem no dia da pátria. Tinha muitos milagres cotidianos, com divulgação de boca a boca. Isso para não voltar à abobora de 50 quilos, que aos poucos foi crescendo de tamanho e peso.

– Tinha uns 100 quilos!

– Mais, muito mais.

Mesmo depois que saiu do povoado, a memória popular continuou aumentando seus feitos. Os passarinhos pararam seus cantos por meses. Meses, não!, anos. Não se ouvia um pio. E as árvores foram diminuindo. O mato virou uma macega rasteira. Todos pediam por sua volta para o alcaide, o ministro, o tabelião, o governador, cartas para o Sumo Pontífice foram enviadas. Mas ela queria outra coisa além de aboboras e de gente xucra. Queria a casa.

O pai, com cinco filhos, já não prometia mais nada e havia um exercício enorme para que o dinheiro durasse até o final do mês. Papel de pão… quando o papel de pão chegava ao banheiro, a coisa estava ficando feia. Ninguém falava. Mas a mãe cortava em quadradinhos os papeis de pão que guardava e os colocava na banqueta. Todos sabiam que papel higiênico só depois da virada do mês. Claro que sempre havia um de reserva, no caso da irmã borboleta chegar em uma tarde qualquer da semana para ver a tia Miloca.  Esse, ninguém ousava pegar.

A multiplicação dos papeis poderia ser um outro milagre. Certo é que não faltava nada, nem carne. O pai brincava que depois do dia 20, todos comiam “meio bife”.  Aquilo virou uma fábula familiar. Um meio bife, depende do tamanho do bife inteiro, filosofava ele. Há famílias nas quais o nosso meio bife é um grande e completo bife. Por outro lado, em outras comunidades, nosso pedaço de carne pode significar nada e nenhum.  E assim íamos. No almoço era a hora certa para dizer as asneiras que ficariam para toda a vida.

Nós já morávamos em uma casa própria, comprada da tia Hermínia, a que tinha cheiro de queijo. Ela fez um acordo que coube no orçamento. Talvez os papeis de pão tenham começado a aparecer com mais frequência, nos cinco anos que pagaram as prestações, mas eles tinham adquirido um lugar para viver sem amargura, finalmente.

Especial e amiga

Eu não sabia que a minha mãe era uma pessoa boa até saber a história de sua amiga Antonia. Nomeada para ensinar em Livramento, Antonia resolver participar de muitas bebedeiras em um clube local de péssima reputação. Expulsa do paraíso, perdeu o emprego de professora e voltou para casa com uma lista de adjetivos a lhe acompanhar. A mãe a recebeu quando ninguém queria vê-la. A mãe lhe ofereceu companhia, quando ninguém, nem os irmãos, aceitavam o ocorrido. A mãe não fez perguntas e não julgou.  A mãe foi a amiga necessária.

Naquele ano, quando chegou o primeiro o frio, liberando o açúcar das laranjas, a mãe viu tia Miloca cair e quebrar a bacia. Não que tivesse visto, mas a imagem lhe apareceu do nada, quando estendia lençóis no pátio. O próprio lençol serviu de tela para seu filme imaginário. Foi até o cartório e avisou o pai que iria até a São José. Teve que providenciar uma logística para carregar a tia até o hospital. Ela desconjuntara ao tentar abrir um trinco da janela, caíra e ficara no chão até Xandica encontrá-la. Estavam as duas meio estonteadas quando a mãe chegou. Vieram os primos e pediram para o lindeiro, que tinha uma camionete, vir junto. Tia Miloca foi na carroceria, deitada em um colchão, olhando as nuvens e tentando descobrir imagens em seus formatos, para sonhar que não sentia dor.

Xandica, a sua companheira índia, ficou na casa, de guardiã.

Quando a tia saiu do hospital aceitou ficar um tempo na cidade até ficar bem boa. Mas ela saiu da Fazenda e foi morar no meu quarto em definitivo. Primeiro, em uma cama de hospital que tinha três manivelas em sua guarda. Na hora de arrodiar, que deixassem comigo a geringonça. Tia Miloca ficou dois meses deitada para cicatrizar o osso. Ninguém acreditava que ela iria caminhar novamente, mas sim, caminhou e ainda foi a muitas missas, amiga que era do padre, do bispo, do coroinha e de todas as beatas vivas da cidade. Eu a levava à igreja nas quartas-feiras, às 7 da manhã e no domingo, na missa das 8. Era para subir as escadas… um pé, depois outro pé… assim, devagar. Durante o período acamada, todas as tardes, a pele de seus pés abria, criando escaras ruins de ver. Lalo, o filho do meio, ajudou a mãe a cuidar da enferma. Lavava as feridas com cuidado extremo e tudo amanhecia direitinho. Mas durante o novo dia, o pé ia escancarando, como se fosse uma massa folhada. À tardinha, hora de limpar e aguardar a cura que vinha durante o sono.

A mãe achou que os anjos estavam ajudando. Tia Miloca aceitara morar com ela. Incomodativa, disse uma, talvez duas ou então milhares de vezes que queria ficar com a casa. Mas tia Miloca renegava… já tinha dado para a Igreja, como poderia “desdar”? Mas não foi escriturada ainda a doação… a mãe argumentava. Está só no testamento. Pode tratar uma outra combinação. E a casa está caindo, nenhum vidro nas janelas, buracos no telhado, dizia, vai ficar só em nossa memória. Precisamos mantê-la para os que vêm depois de nós.

Tia Miloca seguia com suas rezas e suas novelas. Magrinha, era quase uma alma ambulante. Até o dia que acordou a mãe e o pai às seis da manhã. O pai viu o vulto entrando no quarto e cutucou a mãe. Os dois sentaram para ouvir o que a velhinha diria e que mudaria a vida de todos na família.

– Sonhei com papai e ele me pediu que deixasse a casa contigo, Gemina. A mãe, já com a menopausa concluída, teve o sonho parido ali mesmo, no lusco fusco que vinha da aurora. Pouco a pouco, foi esticando o braço para pegar a mão do pai, enquanto via tia Miloca se dirigir à cozinha para preparar o café.

O dia seria intenso e cheio de corruíras.

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Folhetim A mãe e a casa – capítulo 9

Saiba os detalhes de meu encontro com Nossa Senhora e                                                        de como a pobreza grudou na mãe e nas irmãs

DSCN6494Colégio São José - fachada principal, foto de 1950

Irma carmelitaedital 1nos moveis

 

A mãe me puxou pela enorme porta do Convento. Íamos entrar na clausura na qual estava Maria Irene de Jesus, a colega e amiga, que conhecera no colégio São José, de São Leopoldo. Na sala onde entramos tinha uma grade e na grade havia uma janela. De repente a janela se abriu e eu soube que estava vendo uma pessoa muito especial. Nossa Senhora, com aquele olhar de acolhida que te abraça nos encheu de luz. Será que ela fala?

Falou bem baixinho com a mãe, quase inaudível, com sua voz de nuvem: – Que saudades, querida amiga.

A mãe me empurrou para perto da janelinha. Esta é minha filha. Trouxe para que tu a abençoe, disse. Revendo a cena agora, penso: Quem eram as presas naquele lugar? Minha mãe parecia estar me oferecendo para sacrifício. Nossa Senhora Maria Irene de Jesus (porque todas tinham um nome que começava com Maria) parecia ser a pessoa mais livre do mundo, atrás daquelas grades. Seu sorriso era como o das imagens: um meio sorriso eterno… puxando para um lado.

– Vem cá, ela me pediu. A mãe me empurrou, enquanto eu sentia minhas pernas travando cada vez mais. Nossa Senhora não me tocou, não poderia, pois estava do lado de lá da grade e todos sabem que as nossas senhoras não tocam, Deus também não toca, mas sentimos os dedos dos santos e de Deus a nos mencionar, pois os dedos falam também, uma linguagem própria, feita de algodão. O ambiente ficou mais claro e tive impressão de que alguns anjos poderiam aparecer. Seria até natural, anjos a proteger Nossa Senhora. Mas não, era só a adorável Maria Irene de Jesus, com seu olhar macio. Quando saímos de lá, eu estava com um escapulário no pescoço. Fiquei incomodada. Já não bastava o saquinho com uma noz moscada, agora eu carregava um escapulário. A questão da noz moscada tinha sido muito angustiante, mas a mãe insistira tanto que eu tive que ceder. Era por conta da asma, ela dizia. Assim, eu me sentia sempre temperada, com um cheiro discreto mas permanente. Pior se fosse canela!, ela consolava. Depois soube que o escapulário era o símbolo das irmãs Carmelitas Descalças, para as quais o silêncio era uma grande qualidade. Soube também que, ao me abençoar, Nossa Senhora Maria Irene de Jesus teria quebrado vários silêncios, intercalando-os com outros silêncios menores e maiores. Era tudo uma quietagem só. Uma calma pasmada. Fiquei muito tempo com a doença da serenaria. A mãe preocupou-se com tanta quietude. Eu ficava pensando em como seria estar naquele lugar e ter aquele sorriso e me transformar em uma Nossa Senhora, já que tinha um lugar na família chamado Fazenda São José. Só podia ser um sinal. Essa monotonia não durou muito. Fui na esquina, comprei um picolé de creme e esqueci das bençãos e dos silêncios.

O nome da Nossa Senhora Irene de Jesus – no século – era Geni de Oliveira. Um nomezinho atoa, para uma santa qualificada com ela. A mãe conheceu Geni quando a vida tinha lhe dado várias bordoadas. Geni que estudava para ser santinha foi um consolo e uma força.  Logo depois da vó Tila ir no navio para não voltar viva, a família foi perdendo tudo e se perdendo. Nado não conseguia olhar os filhos, compreendeu que sua vida tinha acabado. Virou os espelhos da casa para não ver sua imagem. Ainda sobreviveria mais cinco anos à morte da esposa. Tia Dó sucumbiu na cama. As meninas esconderam as joias de Tila, pois muitos monstros começaram a entrar na casa, cheirando os móveis, os cristais e até as panelas e os penicos. Primeiro, elas viram a mobília da sala de jantar sair pela porta. A cristaleira, o aparador, a mesa com as seis cadeiras. Todas as peças foram para a casa de uma amiga de Tila, vendidas por Nado, imediatamente após o velório. Ele precisava pagar os serviços fúnebres. Vendeu também o Ford Modelo A, mas o restante do que tinham ali e em outros lugares da cidade, foi arrematado em edital, para pagar as dívidas. Até mesmo a casa na qual moravam foi leiloada e, no dia em que selaram a porta, a mãe e as irmãs foram para a Casa Vieira, onde vivia Tia Hermínia, que acolheu as sobrinhas e Felipa.

Melhor assim, teria dito tia Miloca. As tias solteiras, irmãs de Nado, trataram de cuidar das três e também do irmão Luis. Hermínia, a tia que cheirava a queijo e que sempre respondia com uma pergunta, era madrinha da irmã borboleta e Miloca era madrinha da mãe. Da Cecília, que agora inicia sua participação na história, não sabemos quem seja, mas talvez a terceira irmã de Nado, a Maricas.

A mudança

Elas ficaram na casa Vieira, acomodadas no quarto das tramelas. Felipa ficou com as meninas até partirem para São Leopoldo. Depois permaneceu trabalhando na casa, aguardando as meninas voltarem. Tia Miloca falou com o diretor da Rede Franciscana Educacional e pediu três vagas para as sobrinhas. Elas foram de navio até Porto Alegre e depois pegaram outro barco para São Leopoldo, pelo rio dos Sinos. Chegaram com poucas malas para ficar por muitos meses. Ali, iriam vivenciar uma realidade com a qual não estavam acostumadas, o da pobreza. Pouca comida, pouca vaidade, poucos olhares, muito bordado, muita costura, muita aula. Tia Miloca e tia Hermínia dividiam os custos do colégio e, na conta, todos os meses vinha discriminado alguns itens como “aluguel de agulhas para bordado”, ou ainda “linha branca para bainha aberta de toalha de mesa”.

Nenhuma delas havia frequentado sala de aula. Tinham preceptora em casa, que havia lhes dado noções de história, biologia, religião, português, caligrafia, literatura e matemática. Aquelas aulas domésticas serviram para que conseguissem estar adiantadas com as matérias do curso Complementar.

O colégio interno

A irmã borboleta terminou seus estudos de música e formou-se professora de piano, a mãe e a irmã Cecília se formaram professoras do Elementar. Foram dois longos anos que serviram para esquecer o que acontecera. Tinham ficado com pouca coisa. A mãe uma máquina de costura, mas a irmã borboleta viu seu piano Schiedmayer ser levado para leilão por dois contos e quinhentos réis, e parte desse dinheiro foi o pagamento do credor H. Felipe Pohlmann. Era um modelo da mesma partida que havia ganho o Gran Prix, na Feira de Paris de 1904. Os pianos Schiedmayer vieram para Sul do Brasil no início dos anos 1900. A irmã borboleta ficou desolada e furiosa. Professora sem piano!, teria gritado, apontando o dedo para o pai. No colégio ela até havia aprendido como era ser despossuída. Mas o piano não era uma posse, seria seu ganha pão. Com a morte de Tila, Nado ficou exposto. Não foram só os móveis e a casa de moradia. Três armazéns na rua Moron, a casa na rua Sete e mais uma na rua São José, o prédio na praça Balthazar e terrenos. Com as quatro licoreiras de cristal entregaram também os gestos da Tila a servir bebidas feitas de frutas silvestres e açúcar. Nas quatro dúzias de cálices para todos os tipos de vinhos, água e refrescos, foi esquecido de acrescentar o cuidado de Tila em não deixá-las desemparelhar. Tia Miloca ficou com alguns itens que depois foram para a casa da mãe. A queijeira de cristal… quem usa uma queijeira de cristal? A Tila usava. Tudo tocado com cautela e desvelo absoluto. Porque eram delicadas as peças e tinham sobrevivido a muitas viagens de seus ancestrais que vieram pelo Golfo Pérsico, passando por Portugal e chegando depois ao Brasil, após mais uma invasão da Macedônia, pelos búlgaros, ou pelos sérvios, ou pelos eslovênios. No meio de tantas invasões e mortes, muitos resolveram partir e levaram consigo o nome do lugar, por isso seu nome de solteira era Tila Macedônia Pereyra. Os que vieram antes de Tila, se sentiam helênicos e lembravam de Alexandre, O Grande, em brindes e beberagens. Centenas de anos antes, certamente alguém que era parente muito distante, ainda conhecera a Biblioteca, construída pelo grande chefe, em uma cidade que levou seu nome por muito tempo: Alexandria.

A Macedônia e os Macedônia

A mãe gostava de pensar em Tila e, no Colégio, lera todos os livros que falavam sobre os macedônios, povo criado por Makedon, filho de Zeus, o deus dos deuses dos gregos. Também tinha algumas coisas que inventava para se divertir:

– Nós, as mulheres da Macedônia não temos varizes, teria dito em uma festa.

As presentes emudeceram de inveja. Não sabiam o que era, ou onde era ou para o que servia uma macedônia, mas devia ser boa e confortável, ruminavam.

Não satisfeita, a mãe contava aos filhos sobre o reino da Paiônia, onde viviam os antigos paioianos, conquistados pelos macedônios, “nossos parentes”, dizia. Quando conquistada por Roma, a província chamava-se Macedônia Salutaris. Todos esses nomes deixavam seus filhos com sílabas de sobra voando sobre as cabeças, mas era assim que a mãe fazia-os dormir, em uma remota cidadezinha chamada de Santaninha dos Carrapatos, o lugar no qual ela iniciaria sua outra profissão: além de professora, ela ficaria com fama de milagrosa.

 

 

 

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Folhetim A mãe e a casa – Capítulo 8

 

Conheça a mãe caveirinha e sua irmã borboleta, uma casa cheia de notas musicais e a tia que vivia na cama.

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A mãe cresceu na Casa Quinhentos, da rua Sete. Era grande, com muitos cômodos, em uma esquina da cidade, perto de tudo. Era tão grande que foi dividida em duas e seus pais – os avós de quem está aqui a contar tudo isso, a vó Tila e o Vô Nado, ficaram com a parte que dobrava para a rua Conde. Tila e Nado tinham uma vida aparentemente boa. Tila era Macedônia Pereira, antes de casar, filha de Juiz, irmã de Juiz, neta de Juiz. Um Juiz virou uma praça na capital. Era apegada à igreja, ajudava nas quermesses e era muito, mas muito virtuosa, imaculada e casta. A mãe costumava contar aos filhos sobre um porta joias que ela havia ganhado de Nado. Duas mulheres nuas, modeladas em bronze, seguravam a peça. Acanhada como era, Tila fez de crochê um pequeno sutiã para tapar o seio das pequenas estatuas. Quando a mãe teve o primeiro filho, Tila apareceu durante o parto, pedindo para levar a criança para o outro mundo.

Voltando à casa, ela era grande, tinha um corredor imenso que acompanhava os cômodos.  Suas peças eram cheias de teclados, desenhados em papel, com as notas naturais e os sustenidos. Cada desenho era do tamanho do teclado original de um piano e eram enrolados, quando não estavam em uso, pela irmã borboleta. Quando a irmã queria tocar, desenrolavam-se os trambolhos de cartolina nos lugares mais inusitados, como a mesa da cozinha, a cama, o aparador ou a escrivaninha.

A mãe ouvia a sua irmã borboleta com uma ponta de breve inveja. Porque a inveja longa não fazia parte da sua vontade. Gostava da irmã e de vê-la solfejar, marcar o tempo com o pé e tocar naquelas aquarelas. A ela restou tocar no bandolim, abandonado por Tila, os hinos todos, da Bandeira, Nacional e do Rio Grande do Sul. Mal sabia a mãe que, um tanto de anos depois, ao ser contratada como professora, lá em Santaninha, ela iria deixar os alunos espantadíssimos ao dedilhar o violão e ensiná-los a cantar as canções da pátria. Um pano verde servia de bandeira que ela amarrava em uma taquara na primeira semana de setembro, quando iniciavam as festividades da independência. Toda a honra e toda a glória para aqueles alunos que a acompanhavam como se fosse uma deusa da sabedoria e da música.

Um pouco mais crescida, a mãe tinha uma feiura que se aprimorara. Era permanentemente comparada à irmã mais velha, a qual era linda e ondulada, quase uma madrepérola, uma revoada de cegonhas e um almofariz de alpaca ao sol do meio dia. Aos 5 anos, a irmã já tocava o piano de som imaginário que Tila, por sugestão da sua irmã, a tia-avó Maria da Glória, ou simplesmente Tia Dó, fez para ela. Aquilo transformava a casa em um depósito de notas mudas. Neles, a irmã borboleta aprendeu os primeiros sons. Tocando no papel com os  dedinhos e cantando a nota indicada em seu tom correspondente. Aos seis anos, sabia as escalas mais simples e aos sete, já com professora de música e um instrumento na sala, pequenas peças de autores clássicos.

Em reuniões sociais, iam até a casa e a tiravam da cama para que tocasse algum Allegro aos presentes na União de Moços Católicos.  Ia com a boneca a tiracolo, com a cara de sono  e, embora fosse uma criança, já tinha compostura para ser olhada e admirada. A irmã borboleta, mesmo sonolenta, gostava que fosse assim.

Enquanto a irmã arrasava nos saraus provincianos a mãe era apelidada pelos primos de caveirinha. Mas ela tinha um amor chamado Felipa, que a havia criado e era sua mãe de leite como falavam… Felipa era negra e seu colo era um ninho no qual a mãe esquecia que não era tão querida quanto a irmã borboleta. Até o dia em que Tila, que era sua mãe, embarcasse naquele navio, a família tinha um ritual de verão. Quando as águas baixavam e o passo do São Nicolau era possível de ser atravessado, todos iam para a São José. Tia Dó ficava na casa da cidade. Não gostava de campo, capim, vacas e os parentes do outro lado, que tinham sobrenomes múltiplos que pareciam itens da herança.

A família da mãe se instalava no engenho de farinha, já desativado. Lá Felipa era dona absoluta do fogão e do cardápio feito com os mantimentos levados. Cada irmão da tia Miloca, Nado era um deles, se responsabilizava pelo que haviam de comer os seus. Alguns irmãos já tinham casas próximas à São José e então se dividiam os 29 sobrinhos. Tia Miloca permanecia com sua saleta e seu quarto intocados. Podia cair a casa com tanta gente. Seus aposentos eram habitados somente por ela e o Espírito Santo. Era bom demais, pensava a mãe, ainda menina. A mãe caveirinha adorava aquele monte de gente a inventar moda, a pegar bois para as carretas, cavalos para montaria e para a aranha. Como era magrinha, era a colocada para competir nas disputas de charretes ou nas corridas de cavalos. E nas tardes mormacentas, a brincadeira mais divertida era entrar para dentro de um pneu e descer a lomba até a estrada. A mãe conseguia, mas a irmã borboleta passava ao largo desse brinquedo. Se detinha nos teclados e nas escalas, para não perder o foco, dizia Tila.

Um pouco mais velha que a mãe, era linda, rechonchuda, rosada, brilhante, tinha mãos de pianista já ao nascer, diagnóstico feito rapidamente pela tia Dó.

Pausa para a tia Dó.

Tila tinha uma irmã solteira que morava junto na casa Quinhentos. Tia Dó era expert em cantar as escalas e havia sido a primeira professora da irmã borboleta. Era dela a ideia de desenhar os teclados. Ela ensinara os tons e os semitons, as colcheias, semicolcheias e os bemóis para a sobrinha. Também as claves e os compassos e a divisão do tempo. Ensinava para os quatro filhos da irmã.  Quando não estava ensinando, estava varrendo, passando pano dos móveis ou ainda bordando uma toalha encomendada pela vizinha, ou guardanapos de bilro, que ela fazia como ninguém.

A mãe de tão feinha não conseguia aprender. Por isso sua inveja não podia espichar. Porque seria uma inveja ausente e sem significado. A mãe se encolhia frente a tão grande perfeição. Tem uma foto na qual se pode ver o jeitinho dela. Era mirradinha, a mãe.

Tia Dó foi morar na cama

Pois tia Dó um dia resolveu viver na cama. Tudo era feito na cama. Cortar carne, ler, costurar, fazer crochê, cantar, cuidar das crianças, ensinar solfejos, pentear-se. Começou quando sentiu que de pé não conseguiria parar de urinar. Tentou não tomar mais água, mas foi ficando seca e com a pele solta vagando pelo corpo, cheia de dobrinhas e murcha. Muito murcha. Seu braço ficara uma lixa e, de repente, era só um ossinho vestido com uma pelezinha. Quando se deu conta já havia ido para o hospital. Trataram-na como se fosse louquinha, mas sem ameaça de dano aos da casa. Quando voltou sentou-se na cama, pediu mais travesseiros e não se levantou mais. Para tomar banho, ou lavar o rosto ou escovar os dentes tinha apetrechos e móveis bem próximos. A família se conformou com aquilo. Ela estava sempre ocupada com alguma encomenda. Ou uma toalha, ou uma colcha para uma das irmãs. Trabalhava, orava, virava-se de um lado para outro, sempre na cama. Uma vez até escolheu feijão e cortou carne para Felipa, o amor da mãe.

Na segunda semana, todos já estavam achando normal a nova morada da tia Dó. Nem ficaram mais chateados pelo fato de que não vinha para o almoço. Acabaram esquecendo que ela existia e o quarto foi escurecendo. Quanto menos pensavam nela, mais sombrio ficava o quarto. Mesmo com as janelas abertas, o quarto era escuro como uma caverna e a mãe e as irmãs, novas ainda, começaram ter medo de visitá-la. Tila, irritada com tanta insensibilidade, deu a cada uma das três filhas uma tarefa que tinha a ver com o quarto e com a tia. A irmã borboleta iria treinar escalas, a outra irmã, da qual ainda nada foi dito, iria levar-lhe o almoço e a mãe levaria a janta.

A mãe tremia. Felipa ajudava a “minha vida” a levar o alimento para a tia Dó.

 

Porque seria borboleta, a irmã?

Em uma das tantas festas que Tila fazia, a irmã ganhara um triciclo. Mas o triciclo era por demais pequeno para uma moça tão grande, linda e fofa. A madrinha Hermínia, irmã de Nado, ao vê-la, não pode conter a exclamação.

– Querida, pare de tentar dirigir essa geringonça. Tuas asas não cabem nesse pequeno mundo!

– Que asas?, perguntou Tila.

– Mas ela não é uma borboleta? respondeu tia Hermínia com uma pergunta, como era seu feitio.

Pronto. Ficou irmã borboleta para o resto da vida. A mãe gostou de criar raiva na irmã. Criar raiva nos outros, deixava-os menores e instáveis. A mãe gostava disso, ela podia parecer mansa e tímida, mas era determinada e furiosa. A irmã borboleta era tudo o que o sonho prevalece, mas não tinha garrafinhas verdes que a tia Miloca havia dado. Não tinha o leite com “biscôto”, no horário certo da fome e que o amor Felipa levava. Não tinha.

Ela tivera a sua mãe, Tila, somente até os 16 anos. Ela e suas irmãs a viram partir em um navio para não voltar a Cachoeira e ao convívio. Tila morreu no Hospital da Beneficência Portuguesa. Quando partiu, o Nado já sabia que ela não voltaria e que era sua a culpa pela morte da esposa. Tila viajou com um filho morto em seu ventre. Quando descobriram a morte do bebê, o avô não deixou que a curetagem fosse feita e a criança foi morrendo Tila de dentro para fora. Então, mesmo depois de morta, ela queria ter o filho, por isso foi até a mãe, quando estava para nascer seu primeiro neto. Tila não sabia morrer e levar a alma. Antes de partir para Porto Alegre, Tila ainda tinha alguns momentos de lucidez entre um febrão e outro. Despediu-se das filhas e do filho (que também não foi apresentado, ainda) e desceu em uma maca pelas pedras da Moron, até o barco que a levaria ao navio. Os filhos ainda não haviam sido avisados da gravidade de seu estado de saúde e não imaginavam o repertório da dor que iriam sentir.

Pela ausência de Tila e também por tia Dó. Além de desmemoriada, ela ficou demente ao saber da morte da irmã e foi encolhendo naquela cama, naquele quarto escuro, onde a luz era impedida de entrar mesmo com as janelas abertas. Foi encolhendo até que não restasse nada dela, nem uma fala, nem um sorriso, nem uma escala em tom maior.

Então Felipa sentiu o cheiro da morte chegar à cozinha e foi indo pelo corredor até o quarto da tia Dó. Ao abrir a porta, um bafo de amônia invadiu seus poros. Escancarou as janelas e viu lágrimas no rosto imóvel, na semi-escuridão que permanecia. Com vagar e respeito trouxe uma infusão de muitas ervas, com a qual lavou o corpo, rezando enquanto passava o pano para molhar e o pano para secar. Aprendera com a sua mãe, que aprendera com seus avós, que tinh­­­­am vindo da África, que era preciso ajudar os mortos a encontrar a estrada do morrer, levando a alma consigo.

Era tardezinha, uma réstia de sol conseguiu romper a dor e iluminou o rosto de Tia Dó. Os quatro filhos de Tila não tinham ideia do que viria a seguir.

 

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Foletim A mãe e a casa – Capítulo 7

Todos vamos saber porque Santaninha não caiu nas graças da tia Miloca

Os ovos azuis deram o que falar. Os comentários foram lambendo as casas de Santaninha. Era ao mesmo tempo um milagre e uma ameaça. Seria a professora uma bruxa, uma fada ou uma santinha? Tia Miloca, que não gostava de povo, nem de adoradores desviados do caminho de Nossa Senhora e Jesus, tratou de quebrar os ovos jogando-os na casinha das necessidades, aquela que deixara atônitos os moradores, por ser a primeira em um raio de quilômetros. Passado o susto, a professora foi apelidada de Dona Privada, e assim a chamavam, cochichando pelas vielas do povoado.

Isso aqui não é um lugar sério, teria dito a tia, puxando as meias de algodão para prender na cinta-liga, em uma operação tão trabalhosa quanto estranha  e demorada, porque eram cinco saias para levantar até que aparecessem suas magras pernas. Recém havia chegado e já queria voltar para a São José. A mãe ruminou um desconforto com um amigável tudo bem… se a senhora quer ir, daqui a uma semana já estaremos por lá. E a tia foi, sem pestanejar ou olhar para trás.  Agora levando os dois filhos. Deixava a mãe, com seu terceiro bebê na barrriga e o pai, arrumando as poucas tralhas para uma mudança que levaria um dia para chegar ao destino, em cima do carroção puxado por duas parelhas de cavalos e com troca de animais em Caçapava.

Era uma viagem sem nenhum predicado. Talvez sem nenhum verbo ou sujeito. Talvez fosse uma passagem entre o mundo dos duendes e a vida real, uma travessia por dentro do pampa velho e o pampa que nascia. Em resumo, uma grande bosta, diria o pai. Mas eles estavam felizes pela volta e pelas condições melhores. O pai com um ofício e um tabuleiro e a mãe com novo salário e seu inquebrantável sonho. Assim eles chegaram. Tia Hermínia, irmã da tia Miloca, com seu irremediável cheiro de queijo, ofereceu um quarto para o casal e seus filhos, enquanto não encontravam lugar melhor. Era uma casa antiga, de grandes janelas e portas e todos a conheciam como Casa Quinhentos, pelo número, pela enormidade, pelo que contava de épocas já passadas.  O pai e a mãe, finalmente estavam em Cachoeira, era o que bastava.

A mãe começou a trabalhar no colégio Vicente da Fontoura e o pai e seu ofício foi a procura de um Cartório. Descobriu D. Irina, a dona do tabelionato da cidade. Ela aceitou-o como aprendiz. Ele já tinha quase três filhos, olhou aquela mulher e pensou que ela também era uma torre, como a tia Miloca, e aceitou.  Então, agora tinha uma patroa, o que era estranhíssimo no tempo em que viviam. Mulheres não mandavam em homens, muito menos tinham cargos mais importantes do que homens. Mulheres cuidavam da casa e, quando muito, eram professoras. Pois o pai tinha uma patroa, D. Irina. Em pouco tempo, ela entendeu que havia encontrado, além de um ótimo empregado, um grande amigo. Solteira, foi acolhida pela família e era uma presença certa nos almoços de domingo, até quando já estavam aposentados e velhos, todos eles. Ficou como se fosse uma parente próxima. Acompanhou o nascimento dos outros três filhos, sempre alcançando uma medalha para colocar na cabeceira da cama. Quando ela morreu, muito tempo, mas muito tempo depois, acharam ainda uma quantidade razoável de medalhas em seu armário. Um mimo que ela gostava de ter sempre à mão, no momento em que nascesse o filho de algum conhecido.

Era elegante, disposta e tinha uma voz de novela de rádio, um tanto metálica, outro tanto macia. Quando entendeu que a roda da sorte estava a seu favor, pediu que o pai prestasse exame para oficial ajudante. E as coisas começaram a melhorar ainda mais. Com um parcelamento quase secular, Tia Hermínia vendeu ao pai uma casa próxima à igreja matriz. O dinheiro dava, mas tudo era controlado. Uma caixa de fósforo comprada entrava na lista das saídas.

A segunda guerra passou por eles e pelos três filhos. A mãe lembraria depois das filas para conseguir açúcar de beterraba, farinha de milho e mandioca, arroz e sal. Os racionamentos dificultavam a vida, mas o casal só tomou partido e teve um lado quando a casa de um amigo, descendente de alemães, foi atacada pelos descendentes de portugueses. A ignorância desceu como uma chuva fina sobre Cachoeira. Acuados, os imigrantes italianos e alemães já não saiam de casa. O clube onde se reuniam foi atacado e os livros na língua de origem, ao serem queimados pingavam sangue nos paralelepípedos. Até um quadro com a foto de Santos Dumont foi queimado por ser parecido com Hitler. Era quase o Hitler, teria dito um. Não, disse o outro jogando o quadro no fogaréu: era Hitler!

O primeiro filho foi estudar piano com a irmã da mãe. O segundo pensava em ser militar, o terceiro foi para o colégio interno: a mãe não podia com ele e o quarto filho já veio em uma época mais amena. Das vacas gordas, diriam depois. E o pai e a mãe já tinham quatro filhos e eis que a mãe esperava o quinto. Era uma tentativa de acerto e erro.  Desde a primeira vez, o pai e a mãe queriam uma menina. Seu nome seria Rosa Maria. Na quinta vez que ficou grávida, ela fez a promessa de colocar o nome da sua mãe. Assim, ela evitava a famosa visita da mulher do véu negro, na hora do parto. E chegou a menina. Essa que era eu. Porém outra, com um jeito de não ser. Ela, chamaremos assim a criatura, começa a escrever toda a história, como agora escrevo ou talvez sonhe que escrevo. Começa a escrever toda a história, dentro de um sonho que vai sonhando e, dentro do sonho, pode ser que arrume cada frase novamente, uma a uma, sem descanso, essa que não sou eu, mas outra.

Ela, a filha, tinha uma semana de vida quando apareceram-lhe feridas pelo corpo todo. Uma ao lado da outra. O médico não sabia dizer muito bem de onde saíra aquele equizema, mas o padre curandeiro, para o qual a mãe havia levado a criança sabia direitinho de onde vinha. Receitou elixir de mamão, mandou amarrar as suas mãozinhas para que ela não se machucasse ao se coçar e disse que, em cinco dias, ela estaria curada das feridas da pele e começaria a ter asma.  Quando curou a filha, a mãe teve notícias de Santaninha. Os pais de um aluno, passando por Cachoeira, a procuraram para contar que algo estranhíssimo estava acontecendo por lá: embora o tempo continuasse passando por cima da vila, sem tocá-la, a vida fosse tão insípida como uma plantação de abóbora e os moradores ainda temessem morrer de raio, agora o povo tinha um lugar de adoração.

A privada, aquela uma, em certas noites sem lua, acendia-se. De longe era possível ver seu brilho. Assim, o povoado se curvara aos poderes da casinha – e da merda –, provando mais uma vez que a tia Miloca tinha toda a razão quando disse que aquele, realmente, não era um lugar sério.

 

 

 

 

 

 

 

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Folhetim A mãe e a casa – Capítulo 6

Aqui o leitor irá saber da relação do pai com  o xadrez e sobre a certeza da mãe 

Então o pai voltou e a mãe foi percebendo que ele ficara com a alma e o corpo modificados e cada dia melhor. Frágil na chegada da fuga do hospital, em um mês, começou a se sentir forte e com ânimo. Mas a falta de dinheiro agora doía mais. Porque havia demandas que não eram realizadas. O mundo estava cheio de músicas e de livros e ele mal conseguia jornais velhos para ler. E tudo era lido. Onde estivessem as palavras, lá estava ele concentrado. Nem mesmo o tabuleiro e as pedras de xadrez conseguira comprar. A penúria fez com que o casal voltasse para Santaninha somente com o filho mais velho. O recém nascido ficara com a Tia Miloca, porque não havia leite para duas crianças.
Três meses depois, em uma manhã morna e úmida a mãe arriscou dizer: – E se tu pedisses ao teu irmão para trabalhar com ele? Não precisarias ir para a estrada, andar contra o vento.

Pausa – temos que falar do irmão
O irmão do pai era uma súmula, uma síntese, uma catástrofe e um armistício. Ele morava na maior casa de Santaninha. Casara-se uma vez com a filha do mais rico comerciante e na segunda vez com a filha do mais rico proprietário de terras. Como chegara até Santaninha, a família não tinha como saber. O certo é que havia ganho um cartório do Borges de Medeiros e, como ali, ninguém vendia nada e os que tinham alguma terra estavam sentados em cima, garantia-se com os casamentos, os óbitos, os testamentos e os nascimentos. Porque disso ninguém escapa, costumava dizer.
Mais novo, o pai não participara, como o irmão, da revolução de 1923. Antes, tinha até se escondido embaixo da cama da mãe quando Honório Lemes, o grande chefe maragato, invadira Encruzilhada no seu levante contra a quinta eleição fraudada que elegeu Borges de Medeiros. O pai tinha 13 anos e, igual a muitas crianças e adolescentes, votara no velho caudilho, assim como seus avós mortos, suas irmãs inexistentes, os porcos e os cachorros.
Sempre de terno de linho branco, com uma simpatia genérica que só o poder permite, o irmão aceitou o pai no cartório. E assim, muito lentamente, a vida começou a mudar.
O pai dedicou-se. Agora sim, tinha coisas para ler, e muitas. Decorou todos os modelos de escrituras – doação com reserva de usufruto, compra e venda -, os termos jurídicos, as leis, as questões de herança, a Constituição, o Código Civil. Lia para si e para a mãe ao deitar. Sem trégua nenhuma. Todas as noites, o filho ouvia sua voz no quarto ao lado. Artigos, parágrafos, itens, subitens e cláusulas. Tudo era dissecado e deglutido. O pai se aperfeiçoava no meio da abstração de uma não cidade. Se preparava para o grande salto em qualquer lugar que não fosse ali, nesse lugarejo distante de tudo. Sentia que estava quase pronto e já não gostava de jogar pôquer, não gostava do cheiro do cigarro, da cachaça nem de Pedro Raimundo.

De volta à história
E então, antes do solstício da primavera, tia Miloca veio visitar a afilhada. Trazia consigo o segundo filho, já com 11 meses e duas correspondências. Um pacote para o pai e uma carta para a mãe.
Para ela, a transferência. Finalmente seria professora em Cachoeira do Sul, com aumento de horas e de salário. Para ele, o tabuleiro, as pedras de xadrez e uma carta do amigo Anton. Uma anotação do administrador do Sanatório Belém, dava conta de sua morte.
O russo se fora e mandava-lhe de presente a passagem para uma nova vida. A carta do amigo lhe deu as nuances que lhe faltavam e lhe indicava Fiódor Mikhailovich Dostoiévski para completar seu aprendizado sobre a humanidade. Ele, que já vinha decorando as possibilidades de uma venda, de uma partilha, de um testamento e de uma doação, agora iria aprender a lidar com essas variantes, relacionando-as e abrindo novas possibilidades de movimentos. Organizado, dividia os moradores das comunidades, das ruas, dos bairros e das cidades em peões, reis, rainhas, bispos, cavalos e torres. Já no Cartório do irmão, começara a aprimorar esse conhecimento e estava sempre pronto para fazer uma síntese daquilo que ouvia e classificar os clientes a partir de uma primeira conversa. Não para fazer diferença no tratamento. Era por pura psicologia. Para falar com mais propriedade e para se fazer entender. O pai, com o terceiro ano primário incompleto, começou aí a ser uma referência para os que tinham problemas com contratos, vendas de terra e herança para resolver. O mundo, não era simples, mas a partir de um tabuleiro as relações podiam ser compreendidas em sua complexidade.
No seu círculo, ele costumava dizer que era um bispo, a mãe era rainha. O concunhado rico – aquele que havia jogado o pente na lata de lixo – achava que era rei, mas era um peão, a tia Miloca, uma torre.
Ele não leu e ela não ouviu naquela noite. Se abraçaram muito. Se amaram muito. Pela manhã, já grávida do terceiro filho, a mãe custou a acreditar no que via: tia Miloca pálida, arregalada e trêmula, vinha do galinheiro mostrando suas mãos cheias de ovos azuis.
Foi aí que a mãe teve certeza de que um dia a casa seria sua.

 

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